Sistema guardião da ICANN e neoliberalismo

by NahFallei

As novas formas de regulação ou institucionalização da Internet, observadas desde seu surgimento, estão ganhando um corpo mais definido na medida em que essa tecnologia tem se tornando cada vez mais ubíqua. Como a eletricidade no passado, a tendência da Internet é “desaparecer” do debate sobre inovação, passando inevitavelmente a fazer parte da nossa rotina comum em seus mais variados aspectos (finanças, trabalho, indústria, empresas, cultura, governos, saúde, educação, ciência, lazer, etc.).

Antes de avançar na apresentação de três argumentos básicos, gostaria de fazer dois comentários sobre o que acabei de dizer:

a-) O desenvolvimento da Internet deve-se em grande parte ao programa de pesquisa multidisciplinar liderado pela cibernética nos anos 50 e 60. Programa esse que surgiu em resposta ao processo de especialização da ciência que já havia se intensificado com os esforços de guerra mobilizados pelos Estados-nação desde a 1Guerra, mas que se intensificou ainda mais durante a 2Guerra. A comunidade científica também foi “alistada” pelo Estado nessa época. A história recente da computação nos mostra claramente esse agenciamento. Nobert Wiener (o “pai” da cibernética), Claude Shannon (o “pai” da teoria matemática da informação), Alan Turing (o “pai” da computação) foram todos eles recrutados na academia para desenvolver pesquisas na defesa, entre 1939-1945.

b-) Essas novas formas de regulação ou institucionalização levam um nome nativo em inglês: Internet governance. Por que faço questão de chamar a atenção para esse detalhe metodológico que tomo emprestado da etnografia? Para desconfiar do meu próprio objeto de pesquisa e prestar atenção no seu registro discursivo. A palavra governance foi empregada, pela primeira, vez pelo Banco Mundial na década de 90 para descrever (e por que não prescrever!) uma forma de governo que não se limitasse ao poder exclusivo de ingerência do Estado. Governança (na tradução para o português) seria então algo como um “governo sem Governo” (este último, com a 1letra em maiúscula).

Daí também o consequente emprego de uma outra palavrinha curiosa em inglês que costuma acompanhá-la: multistakeholder. Internet governance e multistakeholderism são palavras que estão na ponta da língua de todo mundo que frequenta as panelinhas internacionais e nacionais da governança da Internet – um universo à parte, isto é, um espaço de atuação política sui generis (estranho aos olhos de quem não faz parte) e que se desdobra em muitos outros… Para citar apenas dois desses espaços, no plano internacional, temos de um lado o IGF (Internet Governance Forum) que acabou se configurando como uma instância para fomentar o debate sobre regulação da Internet e as reuniões da ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) onde de fato se bate o martelo.

Pois bem, só para fechar esse último comentário, é preciso situar um certo imaginário em torno da Internet que tem atravessado, de maneira um tanto quanto heterogênea mas persistente, muitos dos discursos que circulam nesses espaços. Esse imaginário tem suas origens no neoliberalismo da década de 90, quando se criou um certo consenso de que a Internet era democrática per se e deveria permanecer sem regulação, “livre” da burocracia do Estado que atrofiaria sua inovação permanente… Para seu desenvolvimento saudável, a internet teria de seguir então um modelo de governança multissetorial.

Agora não teremos tempo de entrar detalhadamente nesse ponto, mas a literatura crítica, mostrará que a chamada governança multissetorial da Internet, que deveria incluir representantes de setores sociais distintos (sociedade civil organizada, Estado, empresas, ciência, etc.), tem sido regulada, na realidade, por um grupo muito restrito de empresas monopolistas dos Estados Unidos, entre elas as que formam o grupo GAFA (Google, Apple, FaceBook e Amazon).

Gosto de pensar a regulação da Internet inspirando-me na tese de Karl Marx segundo a qual “toda forma de produção forja suas relações jurídicas, [sua] forma de governo”, isto é, suas próprias formas de regulação (esse insight tá lá na pág.. 60 dos Grundrisse).

Daí ser imprescindível uma incursão à esfera do modo de produção dos protocolos da Internet, ou seja, é preciso olhar para como os diagramas (blueprints) que tornam possível a interoperabilidade entre diferentes objetos técnicos são produzidos. Mas o que são exatamente esses protocolos entre redes?

Vamos começar pelo o que eles não são. Protocolos não são códigos de software, nem produtos materiais, mas uma linguagem numérica e textual que faz a interoperabilidade acontecer na rede (os blueprints ou diagramas citados antes). São, portanto, uma espécie de “acordo entre redes” à semelhança de um contrato informal entre cavalheiros, baseado na palavra e celebrado apenas com um aperto de mãos. Um contrato, em certo sentido, fora da lei, mas não ilegal aos olhos do Estado. Daí a afirmação de Laura DeNardis, de que “protocolos não são necessariamente validados pela lei, embora nunca tenham deixado de regular o comportamento humano”.

Agora vamos aos três argumentos!

1o- A Internet pode ser descrita como um conjunto de protocolos técnicos e políticos. Mas por que políticos? Protocolos são técnicos e políticos porque controlam tanto o fluxo de informações quanto as decisões que definem o modo mesmo como “a rede de todas as redes” funciona. Só uma rápida observação: a Internet tem múltiplas camadas, estou falando, agora, apenas de sua camada lógica;

 2o- Esse conjunto de protocolos tecnopolíticos encerra uma contradição. Se na camada de conteúdo (a Web), a experiência de comunicação entre seus usuários se dá de modo distribuído (o fluxo de informações na rede é descentralizado) e observamos uma quantidade substantiva de códigos livres produzidos de maneira aberta e distribuída, na camada lógica (o DNS) observação-se o contrário: sua gestão se dá de maneira altamente centralizada, através de instituições burocráticas mais ou menos híbridas cuja jurisdição encontra-se em países do norte global e, sobretudo, nos EUA, como é o caso, por exemplo, da ICANN, regida pelas leis da Califórnia.

Essa instituição transnacional (formada por representantes dos interesses dos Estados-nação, grandes empresas de tecnologia, setores da academia e da sociedade civil organizada) controla os protocolos que fazem a interoperabilidade da rede acontecer, os chamados recursos críticos da Internet, isto é, os nomes e números de domínio. Mas como a ICANN faz a rede ficar de pé? Através de uma tecnologia de endereçamento (o DNS) cuja arquitetura é hierárquica e centralizada. Pra quem nunca ouviu falar da ICANN, basta pensar nos “.com”, “.net”, “.edu”,”org”  etc. O mais famoso, o “.com”, por exemplo, é um dos domínios explorados comercialmente pela Verizon – empresa bilionária estadunidense que fatura muito com seu aluguel.

3o- Essa lógica protocolar da Internet inscreve-se em um quadro histórico mais amplo, relativo ao surgimento de uma razão de Estado que ainda nos é contemporânea: a governamentalidade neoliberal tal como descrita por Foucault. Afinal, é o liberalismo que introduziu a questão da liberdade no interior da Razão de Estado transformando-a num imperativo das novas práticas de governo. Com o deslocamento da economia do espaço doméstico (gestão da casa) para o espaço comum (gestão do território e da população) vemos inaugurar uma das orientações fundamentais do governo moderno e contemporâneo: a nova missão do Estado é garantir a liberdade. Mas de que “liberdade” estamos mesmo falando? A liberdade concorrencial no capitalismo monopolista.

Agora, eu gostaria de fazer apenas um último e rápido comentário. Disse agora há pouco que devemos olhar para o modo como os protocolos da Internet são produzidos. É verdade. Mas devemos olhar para eles sem perder de vista os cabos de transmissão e os provedores que coletam, tratam, armazenam e alugam dados (o “novo petróleo”). É preciso olhar para a economia digital das plataformas como um todo, articulando as peças do quebra-cabeça que faz mover o capitalismo no século XXI. 

 

Obrigada!

Nahema Nascimento Falleiros

Conexão Pós 50. Primeiro Encontro de Pós-Graduação da ECO-UFRJ. Ago. 2017.

 

Referências:

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